Os alimentos lácteos são mais conhecidos por promoverem um esqueleto saudável, mas ossos não são o único tecido que colhe seus benefícios. Os mesmos ingredientes lácteos – cálcio, magnésio, fósforo, potássio e proteína – que constroem e mantêm um esqueleto saudável, demonstraram efeitos protetores sobre doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2 (DT2) e hipertensão. E, agora, um crescente número de evidências sugere que o consumo regular de leite pode também beneficiar os rins.
A doença renal crônica (DRC), atualmente, afeta 27 milhões de adultos nos Estados Unidos e quase 10% dos adultos em todo o mundo. Ela é diagnosticada com base na taxa de filtração glomerular (TFG), porque o trabalho dos rins é filtrar o sangue. Funções fisiológicas normais, como digestão de proteínas e atividade muscular, criam produtos residuais (por exemplo, ureia, creatinina) que precisam ser removidos do sangue e passados para a urina. A taxa de filtração glomerular mede a quantidade de resíduos que o corpo filtra em uma determinada quantidade de tempo. Uma TFG normal é entre 90 e 120 mililitros de sangue por minuto. Embora haja variação no que é considerado normal em relação à idade, sexo, etnia e estatura, valores inferiores a 90 ml/min são considerados indicativos de função renal anormal. Doença renal crônica é diagnosticada quando um paciente tem uma taxa de filtração glomerular inferior a 60 ml/min, por três ou mais meses.
A ligação entre alimentos lácteos e saúde óssea é evidente: leite, queijo e iogurte fornecem os minerais necessários para construir o esqueleto. Mas, como os nutrientes presentes nos produtos lácteos influenciam a capacidade dos rins de filtrar os resíduos?
Um caminho potencial é indireto, isto é, os componentes lácteos influenciam outras funções fisiológicas que afetam diretamente a função renal. Atualmente, a hipertensão e a DT2 são as principais causas de doença renal crônica. Pressão sanguínea elevada danifica os vasos sanguíneos e os néfrons nos rins, enfraquecendo-os e reduzindo sua capacidade de filtrar os resíduos. Os níveis elevados de açúcar no sangue têm um efeito semelhante. Ao forçar os rins a trabalharem mais, a DT2 os enfraquece, até o ponto em que eles passam nutrientes que o corpo precisa (como a proteína albumina) para a urina, juntamente com os resíduos. De fato, o aumento da albumina na urina, uma condição referida como albuminúria, é, por si só, diagnóstico de doença renal crônica.
O consumo de produtos lácteos tem sido associado a um risco reduzido tanto para hipertensão quanto para DT2. Por controlar a pressão sanguínea e o nível de açúcar no sangue, faz sentido pensar que os lácteos também possam alterar o risco de desenvolvimento de doença renal crônica. De fato, dietas projetadas para diminuir a pressão arterial também demonstraram um efeito protetor para DRC. A dieta DASH (Abordagens Dietéticas para Interromper a Hipertensão) concentra-se em oito componentes alimentares: consumo elevado de frutas, vegetais, sementes, legumes e produtos lácteos com baixo teor de gordura, combinados com baixa ingestão de sódio, bebidas açucaradas e carnes vermelhas/ processadas. Os benefícios para a saúde, conferidos por esta dieta, tanto na pressão arterial como na doença cardiovascular são atribuídos aos efeitos aditivos dos componentes alimentares. Ou seja, não é, simplesmente, um ingrediente alimentar que melhora a saúde vascular, mas as ações sinérgicas de todos eles. Visto desta forma, os produtos lácteos são parte de uma estratégia alimentar maior para melhorar a saúde, incluindo a doença renal.
Também é possível que os produtos lácteos influenciem diretamente a saúde dos rins, por meio de suas propriedades anti-inflamatórias e antioxidantes. O estresse oxidativo e a inflamação são fatores de risco para doença renal crônica e para muitas outras doenças crônicas, incluindo câncer, DT2, hipertensão e doenças cardiovasculares. O cálcio, o magnésio, as vitaminas A e E, proteínas e gorduras lácteas já demonstraram propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias.
O suporte ao efeito direto dos lácteos nos rins vem de um estudo de 2016, com quase 4000 adultos holandeses (de 25 a 65 anos), com taxa de filtração glomerular normal ou ligeiramente diminuída. A métrica de interesse foi alterada para taxa de filtração glomerular durante um longo período de tempo, e cada indivíduo teve três ou mais exames em intervalos de cinco anos, de 1993 a 2012. Os autores do estudo descobriram que um maior consumo (definido como ≥ 2 porções por dia) de leite e produtos lácteos com baixo teor de gordura foi associado a um menor declínio na taxa de filtração glomerular por ano. Como os autores do estudo controlaram a hipertensão e a DT2 em suas análises estatísticas, o efeito protetor observado do consumo de leite, embora pequeno (0,11 ml/ min menor declínio por ano), foi atribuído diretamente às ações de componentes lácteos, como cálcio, magnésio, e gorduras insaturadas.
Uma desvantagem deste estudo foi que ele não analisou a influência dos produtos lácteos sobre a função renal em indivíduos com diagnóstico de doença renal crônica, o que torna difícil dizer se as ações dos ingredientes lácteos influenciam a função renal em todos os indivíduos ou apenas naqueles com função renal normal ou ligeiramente prejudicada. Esta questão foi abordada, no entanto, em um estudo publicado apenas um mês após o estudo holandês. Gopinath e colegas relataram a associação entre o consumo de alimentos lácteos, a ingestão de cálcio e a doença renal crônica durante um período de estudo de dez anos, em 1185 adultos australianos que vivem na mesma área, a oeste de Sydney. Os valores da taxa de filtração glomerular basais não foram utilizados para inclusão no estudo e, portanto, esses valores variaram entre os participantes do intervalo normal ao diagnóstico de doença renal crônica. Como no estudo holandês, Gopinath e seus colegas descobriram que o consumo de ≥ 2 porções de alimentos lácteos com baixo teor de gordura por dia foi associado a uma prevalência e incidência reduzidas de DRC durante o período de estudo, independente da hipertensão e da DT2. Este estudo também comparou a ingestão de cálcio com a prevalência de doença renal crônica, e descobriu que os indivíduos que tinham mais cálcio na sua dieta eram menos propensos a ter DRC. Assim, o efeito protetor observado dos alimentos lácteos com baixo teor de gordura é, pelo menos em parte, devido às propriedades anti-inflamatórias e antioxidantes do cálcio. Na mesma população do estudo, a ingestão pobre de cálcio foi associada a vasos sanguíneos anormais na retina, e os autores levantam a hipótese de que uma resposta fisiológica semelhante possa ocorrer nos rins, onde o cálcio influencia a saúde dos vasos sanguíneos renais. Importante destacar que as ingestões de lácteos (e cálcio) foram inferiores aos valores recomendados de consumo diário para 83% dos participantes, sugerindo que mesmo o consumo moderado de cálcio pode influenciar a função renal.
Com o rápido aumento da incidência de doenças renais e outras doenças crônicas, é encorajador que mudanças de estilo de vida, fáceis de ser implementadas, como comer duas ou mais porções de alimentos lácteos com baixo teor de gordura por dia, possam ter benefícios tão profundos para a saúde.
Fontes:
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Fonte: Beba Mais Leite